OBSERVATÓRIO BAIANO SOBRE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS

CETAD Observa

“Quando se propõe uma proibição e se propõe uma guerra, não está se guerreando contra a cannabis, está se guerreando contra camadas sociais”

Entrevista com Fabiano Cunha, Cientista Social pela Universidade Federal da Bahia e militante do movimento antiproibicionista, sobre o movimento social da Marcha da Maconha.

Quando e onde a Marcha começou a acontecer?

A marcha da maconha começou a ser formulada a partir de um fórum virtual chamado Growroom, composto por diversos cultivadores que tiveram a iniciativa de burlar a lei proibicionista e começaram a cultivar em casa mesmo e através do fórum eles trocavam e ainda trocam informações acerca do cultivo, começando a organizar movimentos sociais a favor da legalização da maconha. A marcha da maconha na verdade não começou no Brasil, nasceu em Nova York na década de 80, mas é um movimento que se expandiu no mundo inteiro, a chamada Global Marijuana March, então em pelo menos 600 cidades do mundo inteiro acontece essa manifestação a favor da legalização da maconha. Mas no Brasil especificamente, foi a partir desse fórum virtual que partiram as discussões e começou-se a instruir as pessoas sobre como organizar a marcha da maconha em cada cidade e então, graças ao Growroom, as pessoas começaram a ter noção da lei e o que poderiam fazer a partir da lei para manifestar o seu desejo da legalização da maconha.

De quem partiu a iniciativa e qual era/é o seu objetivo?

O fórum Growroom era e ainda é muito constituído pela classe média e alta, ou seja, indivíduos que tem poder aquisitivo e podem cultivar, porque o cultivo caseiro é de certa forma mais caro e se restringe a uma determinada classe social, por conta disso, inicialmente a Marcha teve participação dessa classe mais elevada. Mas atualmente a pauta se expandiu para outras camadas sociais, a exemplo da luta contra o genocídio do povo negro, que envolve não só os usuários de drogas, mas os não usuários que sofrem com essa política proibicionista. Então basicamente se iniciou com uma classe média e alta, aquelas pessoas que tinham condição de cultivar a cannabis em casa, mas agora a intenção do movimento é que se expanda essa pauta para o Movimento LGBT, Movimento Feminista e o MST, pois envolve a agricultura. Então a ideia é que essa pauta seja de interesse total da sociedade e não se restrinja a determinadas camadas sociais.

Cada ano é levantada uma temática diferente?

Sim. Mas nós não temos um fórum Nacional construído, produzido e instituído ainda, agora que vamos tentar organizar um movimento nacional com o primeiro Encontro Nacional de  Coletivos e Ativistas Antiprobicionista, que irá acontecer em Recife no final de Junho. Mas nós não temos ainda uma institucionalização nacional da Marcha da Maconha especificamente, então a ideia é que o movimento seja o máximo horizontal possível, ou seja, cada cidade tem a sua autonomia para decidir qual a temática e o que irão pautar a cada ano, a ideia é que não tenha um grupo determinando o que a Marcha da Maconha deve ser e os outros grupos menores seguindo, como por exemplo, as cidades do interior, mas que cada um tenha a sua autonomia. É aconselhável que a cada reunião e a cada ano, cada cidade e Estado escolha a sua pauta específica, aqui em Salvador, o ano passado e esse ano, nós decidimos levantar a pauta da criminalização da pobreza e o genocídio do povo negro, mas em outros lugares levantam a questão do cultivo caseiro, o encarceramento em massa. A ideia é que os temas se diferenciem, justamente para manter essa horizontalidade do movimento.

Quais cidades irão participar da Marcha?

Principalmente as capitais participam, com exceção do Acre. Nesse ano o Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo já marcharam e irá marchar Salvador, João Pessoa, Natal, Fortaleza, Baixada Santista, Recife, Florianópolis, Brasília e tem também os interiores, como Balneário Camboriú, enfim, são muitas cidades. Apesar de em algumas cidades como Salvador, o movimento tenha apresentado uma desmobilizada, a ideia é que cresça cada vez mais, apesar da condição atual do país.

Você acredita que a visão da Marcha como uma forma de apologia ao uso de drogas tem sido mudada?

Sim, principalmente quando o STF julgou em 2011 e teve que abrir uma sessão determinando que a marcha da maconha não é um movimento de apologia e o entendimento após 2011, é que se trata de  um movimento democrático, porém, ainda há resistência da sociedade por conta da desinformação da mídia ao longo da história, pela lavagem cerebral que acontece e sempre aconteceu para criminalizar o uso da maconha e de outras drogas ilegais. Mas à medida que vamos usando camisas nas ruas, que vamos pautando isso nas redes sociais, à medida que vamos explanando isso e principalmente, praticando atos de desobediência civil, as pessoas vão começar a respeitar mais e dar credibilidade a quem só quer ter a liberdade de uso do próprio corpo e a liberdade de expressão. Então acho que a tendência é cada vez mais a sociedade a aceitar a condição do usuário de drogas como um cidadão que paga os seus impostos.

Quais os avanços conquistados do início das manifestações até hoje?

Foram muito poucos, mas um dos avanços que a gente pode citar foi a reclassificação do CBD, que é um componente da maconha, sendo reconhecido como um remédio em 2013 pela ANVISA,  deixando de ser uma droga proscrita. Com isso, parte das famílias que tem a necessidade de ter o óleo de CBD derivado da cannabis, vão poder ter acesso à importação, mas a reclassificação foi muito pífia em relação às demandas das famílias, ou seja, existem àquelas que têm a autorização do juiz de importar, mas o remédio fica retido na ANVISA e isso acontece com muitas famílias, mesmo com a importação ainda não há o acesso devido para a quantidade de pessoas que precisam. Por isso nós queremos que avance ainda mais, porque o Brasil pela sua vasta condição climática e seu vasto território, pode ser um exportador de óleo de CBD e não um importador como acontece agora, podendo fornecer não só para a demanda nacional que é grande, são mais 700 mil famílias que necessitam desse remédio. As doenças são raras e diversas, por exemplo, epilepsia, esclerose múltipla, câncer, glaucoma, síndrome de dravet, fibromialgia e que não conseguem ter efetividade com os remédios vendidos na farmácia, mas que a maconha consegue garantir uma qualidade de vida, mesmo não curando. Então o que a gente quer é que essas pessoas tenham acesso livre, sendo o cultivo caseiro e o cultivo nacional a melhor forma de se conseguir isso.

A marcha apresenta uma composição de diversos segmentos? Quais são eles?

Ainda não, a ideia é que se expanda cada vez mais, mas ainda está muito restrita a essa camada média e alta. Por exemplo, aqui nós só conseguimos mobilizar para a marcha da maconha no ambiente universitário, pois só as universidades conseguem garantir um campo seguro para conseguirmos debater isso, a exemplo do que fizemos ano passado, no colóquio “Maconha, Saúde e Políticas Públicas” na Universidade Federal da Bahia para discutir a questão da maconha medicinal. Mas o ideal é que a gente leve esse debate para as quebradas, para as favelas, onde não tem essa informação e onde a polícia invade as propriedades, onde não existe os direitos devidos, ou seja, onde a polícia não respeita os cidadãos, essa camada que não tem muita informação é que deveria ter maior acesso, muitos deles até criticam por conta da informação que a mídia de massa transmite, por isso é muito restrito o nosso debate. Mesmo porque, a maconha em específico é uma commodity muito lucrativa, verificando o que tem acontecido no Colorado e em muitos estados nos Estados Unidos, em que ela está gerando muito lucro, então isso interessa a indústria, há quem diga que ela já está se apropriando da legalização. Não é apenas a questão de fumar a maconha e ter os baratos, envolve também a indústria têxtil, a indústria marítima que precisa da fibra muito forte da cannabis, o óleo de cannabis é um combustível, as indústrias de alimentos, no Colorado existem pirulitos, cerais e leites da semente de maconha. Existem diversas formas que a indústria pode se beneficiar com a cannabis, então isso pode ser uma alavanca para impulsionar o interesse de outras camadas.

Porque uma droga como o álcool, que provaca mais efeitos nocivos aos usuários é legalizada e a maconha não?

Pelo lobby da Indústria. Não é interessante para a indústria da bebida alcoólica que a maconha seja legalizada, porque eles perderiam mercado. Em relação ao álcool existe muita divulgação para garantir o lucro dessa indústria. Se a maconha fosse legalizada, haveria uma divisão de consumo e isso não é interessante para o setor do álcool. Em outras indústrias também, como a farmacêutica e a bélica, há muita resistência para a legalização da cannabis.

Quando você diz a indústria bélica, o que quer dizer?

Falo por causa da “Guerra às Drogas”. Quando se propõe uma proibição e se propõe uma guerra, não está se guerreando contra a cannabis, está se guerreando contra camadas sociais. O pretexto de proibir e fazer busca e apreensão nas favelas não é simplesmente apreensão de drogas. Mas se mata e prende pessoas em condições de vulnerabilidade. É uma situação de controle social.

Quais os efeitos da proibição em nossa sociedade? E quem mais se beneficia com esta proibição?

Quem se beneficia são as grandes indústrias (já citadas), os empreendedores morais religiosos – as igrejas tão conservadoras que promovem esse pânico moral, essa ideia de que existe uma associação entre crime e o uso de drogas. E esse lobby, essa criminalização do uso de drogas, acaba por afetar não apenas os usuários, mas pessoas que não têm nada a ver com o uso de drogas, que podem, inclusive, serem contra esse uso, e ainda assim podem receber uma pesada na porta por parte da polícia, tomar um tiro de bala perdida, podem ser encarceradas e morrer mesmo não estando envolvidas com o tráfico, mesmo sendo inocentes. E a polícia – por acidente ou não – acaba criando esse genocídio, essa violência em massa. Além do mais, acaba reforçando um medo na sociedade. As pessoas se amedrontam achando que o uso de drogas – que a mídia faz questão de dizer que está aí em todo lugar – e o comércio de drogas por si só provocam violência. Isso gera pânico, medo, violência, corrupção – o corpo policial não dá conta de proibir tudo (mesmo porque o consumo existe e sempre existiu) e isso gera possibilidade de corrupção – veja aí o helicóptero de José Perrella, apreendido e que não deu em nada. Caso claro de corrupção. Muitos policiais se beneficiam com isso, recebem propinas das bocas nas favelas, para conceder a venda de drogas, muitos até fazem guarda, protegem as bocas e ganham propina através disso.

Como acontece o policiamento durante a manifestação? Existe algum tipo de coerção ou violência?

Não. A coerção só existiu na época em que era proibido. Até antes do STF autorizar a marcha e legitimar o movimento social, a policia já estava lá, censurava de vez, detinha os manifestantes. Do lado jurídico, os desembargadores já impediam no dia anterior, embargavam a marcha e não deixavam acontecer a movimentação. Mas depois que o STF legalizou, a gente não percebe a participação da polícia. E quando a polícia vem, ela vem para garantir o direito de manifestação. Mas, por exemplo, na marcha de 2013 não vimos nenhum órgão institucional aqui, na de 2012 só havia uma viatura da polícia, que ficou atrás e não impediu de forma alguma (a manifestação). Em 2014 e 2015, também não houve participação de órgãos institucionais. Eles ignoram. Então, isso também é um problema, porque (é difícil) conseguir organizar a massa de manifestantes sem a ajuda da Transalvador. Tem que organizar para que as pessoas não tomem a pista da contramão, para que a marcha tenha um bom prolongamento. Na marcha de SP agora a polícia não esteve presente. Acho que é uma forma de ignorar o movimento, de dizer que não tem importância, deixar que o movimento se vire. Mas a gente dá nosso jeito e acontece tudo bem.

Você acha que a Marcha alcança outros públicos da sociedade, além das pessoas pro legalização?

A ideia é que sim. Deveria alcançar mais. A nossa marcha esse ano tá pouco mobilizada e também em outros anos, a gente não conseguiu mobilizar lugares que não seja a universidade, como as favelas. A gente deveria alcançar outros espaços, para que outras camadas da sociedade tivessem acesso. Em 2015, a gente teve outro espaço de mobilização, o centro LGBT ali do rio vermelho, quando existia. O espaço gerou outra oportunidade. Mas ainda não temos muita mobilização para atingir mais camadas, precisamos de mais ativistas e nos unir com outros movimentos sociais para conseguir esse alcance. Mas quando a gente vai pra rua, a gente não deixa de se mostrar para outras pessoas, para famílias, idosos, para pessoas que não teriam a percepção desse movimento. Quando a gente vai do Cristo até o porto da Barra, existe uma diversidade de gente. Por exemplo, tem as pessoas que bebem álcool, que curtem bebendo álcool, que podem perceber que somos cidadãos e que também queremos o nosso direito de consumir cannabis. Tem também as redes sociais, que tem uma grande abrangência.

Qual a sua visão acerca do posicionamento do segmento jurídico do país em relação à proibição da droga? Acha que mudanças estão por vir com a pauta do STF?

Sim. O problema é que o sistema jurídico é muito conservador, não conseguiu ainda perceber o direito das pessoas de querer consumir e usar o próprio corpo como querem. É bastante inacreditável que haja uma lei que criminaliza as pessoas que portam substâncias para consumo próprio, essa lei de 2006, artigo 28. Com a votação do STF a favor (já está 3 votos a 0, no aguardo do Ministro Teori Zavascki devolver o recurso e continuar com a votação), com certeza o setor jurídico vai ter que perceber que o porte de drogas não deve ser encarado como um crime e que esse artigo 28 tem que ser extinguido. Até porque as pessoas podem portar álcool, rivotril, tabaco. Não existe uma justificativa plausível para que as pessoas que portem outros tipos de substâncias sejam criminalizadas.

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